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Diálogo com as Sombras (Pré-Publicação)


Num dos passeios à noite, uma figura estranha aproximou-se de Custódio. Aproximou-se demais, enquanto ele descansava na relva.

-Quem é que me persegue?

-Boas noites, não tenhas receio que eu sou apenas uma sombra. -Uma sombra? Então vocês não são visíveis sobretudo quando há luz?

-Não é bem isso. É que durante o dia arrastamo-nos atrás dos nossos originais e somos impedidos de falar, além do mais não consigo descansar porque o meu original revolve-se na cama em sonhos terríveis e abominantes, sabes, tenho até medo que mate a sua própria sombra.

-Quem é o teu original? - Perguntou Custódio.

-O meu original é um médico. Acho-o uma pessoa vazia. Não tem vida própria. Nem sequer mereceria ter uma sombra dedicada como eu.

-Estranho e curioso quando falas nisso, pois não sei o que diria de mim a minha sombra. Por acaso não a conheces?

-Não sei, as sombras reúnem-se à noite em antigos castelos ou junto a regatos para expor as suas observações sobre os seus originais, ou donos. Falamos mais em factos do que em nomes; o que nos interessa é o conteúdo das acções, a motivação, social ou subjectiva. Temos algum carácter divino pois cruzamo-nos frequentemente com os anjos que por vezes vão até à terra em auxílio dos seus protegidos. Pois eu te digo que não sei mesmo se terei sombra com alguma inteligência. Às tantas não tenho tempo para fazer sombra, de tão inquieto sou. Se tiver uma, será corcunda e olhando insistentemente para trás, não achando coerência nem ligação nos factos do presente. Olha, Custódio, tens sorte em falarmos a estas horas, neste local. Mas se queres que te diga, gosto do teu aspecto. A tua sombra não deve ser como a pintas, talvez sejas tanto assim como dizes, a primeira impressão que tenho de ti é a de um jovem no meio da vida que ainda não desistiu, isso é importante. Mas vou fazer-te o jeito de procurar falar com a tua sombra.

-Seria bom dizeres-me o que ela fala de mim, o que conta nas vossas assembleias à noite, ajudar-me-ia muito a conhecer-me. Além do mais, estou numa situação algo delicada. Sei das pessoas que estão a morrer à minha volta e tenho medo, isso assusta-me. Pressinto a loucura, mais do que isso, a impotência diante da vida que nos passa à frente dos olhos, como se estivéssemos vendo passar num apeadeiro um comboio de alta velocidade. As boas ideias tenho-as poucas durante o dia. O resto são locubrações. Tenho tentado curar-me através do Yoga e penso que vou regressar à igreja, para obter um pouco de paz.

-Reparo que tens muita angústia e raiva dentro de ti; não és frustrado porque tudo tentaste ao teu alcance para conseguir felicidade.

-Obrigado, sombra, já sabes, espero notícias tuas.

-Até breve, disse a sombra que se afastou para dentro da escuridão da noite. Depois daquele encontro, nunca mais Custódio ficou o mesmo.

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